04 junho 2006

Kalaf

Kalaf é o nome do meu violão. É um velho Tocante, viola simples e surrada, herdada de meu falecido avô. Se já é curioso herdar um objeto, ainda mais curioso é herdar um objeto que serve para produzir cultura, tem uma certa vida, uma alma, um hábito.

Quando o vô faleceu eu estava começando a me interessar por música, por sua música, por violão. Então foi que minha vó nostalgicamente me deu seu violão, na esperança de que eu o tratasse com o carinho devido a meu avô e com a devoção devida a sua música.

Quanto mais eu toco o Kalaf, mais eu ouço. Ouço não a música, mas o canto e os reclamos do velho violão acostumado desde antanho com outros dedos, quem sabe outra melodia, quem sabe que melodia.

Mas o que mais ouço não são os cantos, são os reclamos de quem implora a presença de seu verdadeiro dono. Um instrumento que procura reencontrar sua antiga vocação em seu novo instrumento: minhas mãos, novas, inocentes, sem calos, sem dedal, sem unhas.

Com o passar dos anos vou perguntando com os dedos menos virgens ao Kalaf:

Sei que o vô cresceu infância no interior. Sertanejo?
Sei que o vô tocava com dedal. Viola caipira?
Sei que o vô viajou muito, adorava o Nordeste. Baião?
Sei que o vô viveu adolescente no Rio. Samba raiz?

...e para minha satisfação a cada música o velho Tocante reclama menos e soa mais. Toco o Brasil de Norte a Sul: o compositor simples da roça, a bossa com uísque dos intelectuais, a poesia musicada de Chico, o pagode com cachaça de tantos fundos de quintais, o baião incansável de Gonzaga, toco a tocata incompreendida de Villa-Lobos, o samba filosófico de Noel.

Percorro os trastes do violão como quem tateia a História em busca da história que o violão esconde em suas notas ora melancólicas ora alegres. Ora alegres, ora melancólicas como a vida aventurosa de um discreto gênio indomável que só fez alimentar a imaginação da netaiada com seus suaves e divertidos contos de areia.

Nesse compasso o tempo passou e não sei se foi tempo ou o vô quem me ensinou, mas agora, por fim, o velho Kalaf voltou a cantar.



Junho de 2006