06 agosto 2006

Autofagia

Minha mãe, pobrezinha, sempre me importunava para eu parar de comer unha. Sim, ela e eu sabíamos que não era saudável este hábito. Mas que posso fazer, se eu tinha meus tenros anos, pré-adolescente e, não sei se porque realmente gostava ou se meramente por birra, acabei ficando estupidamente viciado neste estranho hábito autofágico.

O vício cresceu e se estabeleceu de tal maneira que não consegui abandonar nem com o contínuo amadurecimento da minha vida. No recreio do colégio, comia o dedo. Na sala de aula da faculdade, roia unha da mão esquerda enquanto a destra escrevia. Após as aulas, enquanto namorava, sempre com a mão esquerda dada à mão direita dela, roia a direita para igualar a poda.

Logo comecei a trabalhar. Sem perceber, nas mais importantes reuniões, desde que era um reles estagiário, devorava vorazmente meus dedos. Mesmo assim meu esforço e eficiência logo me renderam bons cargos e, antes do que se pudesse pensar, estava chefiando projetos e equipes e era uma grande liderança na empresa, centro das atenções. Meus dedos cabeçudos e sem unhas, no entanto, continuavam com sua triste sina.

Alguns me perguntavam se não me fazia mal mascar tanto chiclete e eu não entendia, até que me dei conta que era unha o que eu mascava com tanto prazer. Ficava horas e horas triturando aquele saudável bife de unha enquanto ministrava uma palestra, liderava uma reunião ou lia um relatório.

Tudo isso era absurdo, inaceitável e, por que não dizer, grotesco, claro, como já me havia prevenido décadas antes minha mãe. Não obstante, o tal hábito nojento sobrevivia aos mais variados testes: trabalho, casamento, mão quebrada. Uma época minha esposa tentou até me pintar com esmalte para que eu não comesse a maldita unha e, no final das contas, não é que comecei a gostar da coisa? Em especial um tal de Colorama "Brisa" que tinha um sabor que no fim das contas, combinado com a proteína da unha, lembrava vagamente uma pamonha.

Quando já todos haviam desistido de acabar com meu vício – todos inclusive eu mesmo – eis que o destino nos trouxe um cachorrinho vira-lata na porta de casa. O pobrezinho estava na rua, à noite, morto de frio, com cara de maus tratos, e não resistimos, minha esposa e eu. Logo o cachorrinho se mostrou um doce, muito carinhoso e conquistou todos da casa, da empregada à sogra. O bichinho, no entanto, gostava mesmo era de mim, e andava por todo canto me perseguindo e até mesmo me imitando. Eu falava, ele latia. Eu cantava, ele uivava. Eu comia, ele enchia a boca de ração. Era só me recolher e lá ia ele para baixo da cama tirar também uma pestana. Era tanta imitação que em um dado momento o cachorrinho começou, vejam só, a roer as unhas!

Claro que, a princípio, todos acharam a maior graça, menos eu. Achei um pouco estranho aquele hábito num cachorro. Digo, gato se lambe, macaco se coça, mas cachorro roer unha eu sinceramente nunca havia visto.

Não satisfeito, o cachorrinho aprimorou o hábito e deu para comer seu próprio pêlo também, o que realmente começou a chamar a atenção do pessoal em casa. Em questão de semanas, só haviam sobrado os pêlos da cabeça e as orelhas onde os dentes não alcançavam.

Não passou nem outra semana e o pobre já estava comendo o próprio rabo! Ainda havia um que outro que achava graça. Eu, no entanto, o levei imediatamente a diversos veterinários, especialistas, encontrei até psiquiatra de cachorro. Nem injeção, nem divã: não contente em comer as unhas e os próprios pêlos, passou a comer as patas, uma coisa horrível. Nós assistíamos a tudo, estupefatos! Tentamos colocar uma roupa de tecido, depois de couro, mas já não tinha mais volta, logo o cachorrinho foi se devorando pausada e insanamente. Alguns fugiram de casa para não ver mais a cena, outros preferiam simplesmente manter-se longe – já que depois que ele comeu a quarta pata ele não conseguia mais se mover. Já eu, resignado ao destino que o pobre do cachorrinho teria, procurei ficar ao lado dele e oferecer-lhe o máximo de carinho para os poucos membros que lhe restavam. Admito que era um pouco aflitivo fazer carinho, no final, em uma cabecinha sem orelhas nem língua, que já não latia nem nada, mas era o mínimo que eu podia fazer, afinal de contas tudo aquilo começara por minha culpa: o maldito hábito de roer as unhas...

Um dia cheguei do trabalho e estavam todos à minha espera com a triste notícia: o cachorrinho havia cumprido seu destino. Sua longa e autofágica jornada havia durado, no final das contas, cerca de seis meses e já não restava nada do pobre animalzinho. Ou quase nada, já que num gesto de reconhecimento havia deixado ao menos a linda coleirinha vermelha com seu nome gravado que eu lhe havia dado. Claro que, sem dúvida, o sabor da coleirinha não chegasse aos pés – ou seria às mãos? – da unha com Colorama "Brisa", das patas ou do rabo e talvez este fosse o verdadeiro motivo. Fosse o que fosse, procedemos com todas as honras e glórias condizentes com a triste situação e enterramos com uma cerimônia simples, mas muito amorosa, a tal coleirinha vermelha.

Após um trauma desta magnitude, eu imediatamente deixei de roer unha, pois era, claro, imponderável após tudo o que havia sucedido. Sabiamente deixei aquele hábito e de pronto passei a comer caca de nariz.



Agosto de 2006