11 novembro 2007

Aloisio do Mundo

Aloisio, que e da Cidade, foi ao mundo. Cansado do tédio endemico de seu terceiro mundo, resolveu confortar-se com uma visao do que e seria um quarto ou quinto mundo. Um mundo em que hoje não pressupõe amanha; um mundo em que ser não necessariamente implica estar; um mundo em que caos é palavra de ordem. Um mundo que contem tantos mundos, mas nao tem paises, bandeira, nem lua. Um mundo que contem tantas etnias, religioes, idiomas, mas que nao tem identidade. Um mundo em que tempo é apenas percebido e nao medido.


Aloisio foi ao mundo, mundo de fronteiras inventadas - ou por inventar -, mundo de sereias negras, de deuses zoomorfos com mil dentes, de horizontes semfim. Mundo em que campo é cidade e cidade é campo; e Aloísio, que era da Cidade, sera entao do mundo.

A quem quiser viajar junto, acompanhe: De Volta Ao Mundo

30 junho 2007

Pedro, Simplesmente

Seu nome era Pedro. Nome simples de gente simples. Empoleirado na carcaça de uma velha jamanta brasileira voltando da Venezuela, Pedro via a Amazônia passar com a naturalidade de um adolescente que vê sessão da tarde. Com quinze reais no bolso Pedro tinha, de alguma maneira, de voltar a Vinhedo, interior de São Paulo, para confessar à família que sua aventura pelo mundo havia desventurado e a promessa de voltar rico fora trocada por um coração cada vez mais amargo, um olhar opaco que perdera o brilho adolescente e um rosto empoeirado pela estrada, rasgado por uma grande cicatriz que marcava a última vez que tinha posto mãos em uma nota de cem reais – não por muito tempo.

A jamanta seguia em firmes 30 quilômetros horários, resistindo bravamente ao estado deplorável da estrada de chão seco. Era uma região tão desabitada que as cidades nem sequer tinham nome, eram simplesmente paradas de caminhão demarcadas pela quilometragem da rodovia. Não dispunham de muito mais que um par de índios vendendo água de coco quente, um par de bares vendendo álcool do mais ordinário e um par de putas vendendo seus corpos suados e surrados. O trecho entre BV 8 e BV 32 era conhecido como o mais complicado da estrada, precária ligação que fazia da fronteira da Venezuela com a cidade de Boa Vista. O último dos engodos de Pedro havia sido justamente um bico na multinacional concessionária da rodovia, a mesma que deveria ter asfaltado a esburacada estrada de terra, da mesma forma que deveria ter pago a Pedro os mil e quinhentos reais do penoso trabalho dos últimos dez meses de construir ponte. O capataz um dia não apareceu, a estrada ficou com meia ponte e Pedro ficou sem nenhum tostão. Enquanto os colegas tentavam diminuir ao máximo o prejuízo financeiro roubando para si as botas e os uniformes, ao mesmo tempo em que tratavam de descarregar sua revolta quebrando as instalações e linchando os engenheiros menos experientes que demoraram a escapulir da cidade, Pedro calmamente devolveu as botas e, na contramão da baralhada, acendeu um último cigarro. Sabia que não iria mais fumar. Trocou gestos e pulou na jamanta com o consentimento de um motorista que não falava nem olhava nos olhos.

Durante longos meses, Pedro pulou de carona em carona rumo à sua velha casa. Na primeira semana permaneceu na cegonha, triturado pela não menos ruim estrada que liga a capital de Roraima a Manaus. Carregou 10 toneladas de equipamentos eletrônicos em troca de uma rede pendurada em um barco rústico que o carregou até Belém. De lá costurou a costa à base da bananas doadas, sempre compartilhadas com outros que, apesar de terem seu dinheirinho, o guardavam em bolso falso para comer, em outra ocasião, um PF com ovo às escondidas. No norte foram bananas pequenas com casca avermelhada, ruins para a digestão. No nordeste, as bananas eram grandes, daquelas que se frita para fazer sobremesa. Da Bahia rumou centro-oeste a Brasília, trecho em que passou mais sede do que fome de carona em um trio elétrico que fazia axé fora de época e fora de lugar. O motorista embriagado do trio foi o causador de duas mortes e mais uma cicatriz no rosto de Pedro, que subiu novamente em uma jamanta, desta vez na boléia, pois estava carregada e o motorista gostava de falar, muito embora Pedro não fizesse questão de ouvir. Enquanto um falava de tudo e o outro fingia ouvir, cruzaram Minas Gerais até Poços de Caldas, onde o motorista tinha uma amante e resolveu pernoitar. Convidou Pedro para ficar, Pedro não ficou. Desceu, finalmente apanhou os dez reais, e comprou dois potes de doce de leite para a mãe.

Subiu numa van que transportava freiras para Jundiaí e ficou sem graça devido a seu mau cheiro, mas por sorte as irmãs não usavam ar-condicionado. Quando desceu à beira da Anhangüera, notou, inexpressivo, que um dos potes de doce estava faltando. Lentamente colocou a pequena mochila nas costas para encarar a pé os últimos 30 kmque o separavam da chácara da família que não tinha noticias suas e da qual, reciprocamente, não tinha notícias havia pouco mais de dez anos. Este trecho, por incrível que pareça, foi o mais longo. A ansiedade de estar próximo de sua gente aumentava a aflição e a sensação era de que quanto mais caminhava, mais devagar se aproximava da igreja que desde há muito se via ao longe. No entanto, por mais que o coração se corroesse, o calor o consumisse e o sapato já não desse para mais, sua fisionomia permanecia inalterada, testa levemente enrugada, pálpebras à meia altura, nem triste, nem contente, caminhando certeiro.

Quando chegou, não houve festa. O pai olhou e imediatamente compreendeu que não havia fortuna na bagagem. Aliás, não havia bagagem, fora o doce de leite que arrancou lágrimas tímidas da mãe enferma. Mas sorriu um riso pequeno, não de alegria, mas de satisfação. Sabia que os anos não haviam sido em vão. Via nos olhos do filho o sofrimento, a experiência amarga e dura que a gente simples enfrenta em Vinhedo ou na Venezuela. Sabia que, acima de tudo, o filho era homem feito. E sabia que, se não havia encontrado fortuna na viagem, decerto não havia perdido a virtude.

São Paulo, abril de 2007