27 novembro 2006

Paternidade

Você pode não ser pai ainda. Pode não estar casado, ser virgem inclusive. Pode ser estéril, gay ou simplesmente mulher. Pode ser adotado ou ainda não ter sequer conhecido seu pai por qualquer motivo que não vem ao caso. Mas todo mundo tem alguma idéia do que é paternidade. E para aqueles que nunca pararam muito em meio à intolerante rotina do dia a dia para pensar no assunto, eis uma oportunidade.

Costumo andar pelas ruas para observar a paisagem, as pessoas, alimentar a cabeça com essa enorme televisão de vivas cores, sons e outras semióticas. A impressão que eu tenho é que, quando não saio para caminhar, nada acontece. A vida passa, o dia termina, e eu não tenho nada a mais para contar para meus netos, e minhas histórias começam a entrar em loop. Assim, saí para caminhar, como faço diariamente. Os ares, lares, árvores, padarias, esquinas, anúncios de cerveja, placas de pare, parados como sempre e como sempre, inexplicavelmente diferentes a cada dia. Os mosquitos, carros, cachorros, executivos, luzes, vozes, como sempre, em frenético movimento. E a minha cabeça fazendo a média de tudo isso.

E assim a caminhada ia passando, e eu ia passando por uma vizinhança nova, para mudar de ares, lares, mosquitos, respirar novas idéias. Nesse meio tempo, achando que já estava sendo muito excitante meu tal passeio vespertino, notei uma aglomeração de gente misturada com buzinas e caras xingando o trânsito, coisa típica de metrópole. Tudo isso em uma rua supostamente tranqüila de um bairro jardim. Aproximei-me, curioso e observador como qualquer bicho, e logo percebi uma menininha estirada e inconsciente no meio da rua no meio da gente e um monte de gente rodopiando em volta da menininha trazendo água, buscando água, coordenando o trânsito, gesticulando entre si e falando no celular. E uma moça chorando sem lágrimas e gritando angustiada. Pelo drama, logo vi que a coisa era séria e pensei em perguntar o que aconteceu para logo decidir que não, já havia tanto desespero concentrado naquele metro quadrado que ninguém tem o direito de pedir satisfação, menos um transeunte recém-aterrissado na vizinhança por mero acaso. Então me postei, observei até decidir que tinha acontecido um atropelamento, definir quem tinha atropelado e entender que a moça que gritava e chorava sem lágrimas era a irmã mais velha da menininha estirada no asfalto. A atropelada, claro, era a menininha estirada no asfalto, ainda inconsciente.

Nesses poucos e longos minutos, gente passava, carros reclamavam o trânsito, alguns paravam para olhar, se comoviam, outros alimentavam a curiosidade mórbida com ares pretensos de respeito. Gente queria ajudar, gente tentava ajudar, mas acima de tudo, as gentes todas faziam alguma coisa apenas para se enganar e poder mais tarde, na mesa de jantar, enganar aos familiares – no meu caso meus netos – de que haviam participado de uma boa ação ajudando a pobre menininha, e se sentirem verdadeiramente heróicos e orgulhosos. Mas, de fato: ninguém tinha a mais remota idéia do que fazer. E a menininha continuava inconsciente.

Os passantes metidos a médicos com cultura de telenovela e série da Sony já a haviam taxado de morta, ou asseguravam que ela iria ao menos ficar tetraplégica, retardada ou alguma outra tragédia, afinal, nos filmes, um atropelamento deste calão não poderia passar impune pelo enredo. Mas todos se enganaram. Começaram a perceber que se enganavam quando chegou um homem, de aparência simples, estatura mediana, cabelos grisalhos combinando com o grande bigode igualmente grisalho. O homem ajoelhou-se e começou a falar calmamente com a menininha, como se ela tivesse caído da bicicleta ou tropeçado no espelho da escada. Uma súbita calma apoderou-se de todos. Um manobrou o carro que impedia a passagem dos buzinantes, outro trouxe a água com açúcar para a menininha que acordava, outro acalmava o motorista que tremia e temia pela vida da atropelada. Aos poucos, a menina abriu os olhos, respondeu ao senhor grisalho, levantou, caminhou para a calçada e abraçou-o fortemente por muitos minutos, assustada. Então os dois viraram as costas para o povo atônito, agradecendo discretamente a atenção de todos, saíram caminhando em direção ao edifício de onde havia saído a menininha antes do acidente.

Desta vez não resisti e perguntei à irmã, que os seguia e seguia com seu choro sem lágrimas – mas já sem gritar – e perguntei quem era o senhor que havia socorrido a menininha, se algum médico da rua ou algo que o valha e ela disse "Não senhor, ele é alfaiate. Mas é o nosso pai.".

São Paulo, Novembro de 2006

Um comentário:

tata muchacha disse...

incrível...
os poucos longos minutos em que passeei com vc por este jardim, me foram suficientes para entender a dimensão dos seus passeios pela metrópole.
Me vi sufocada, atropelada e sem bigodes grisalhos para me levantar, entendi sim a paternidade e não chorei mas caíram lágrimas profundamente abandonadas de meus olhos secos e cinzas...
incrível...
mas hoje você foi meu pai e como filha admito estar profundamente perdida e ansiosa por uma contrapartida.
Não saio dessa televisão gigante antes de provar a ela por que vim, e até lá espero ver a sua careca enorme me contar histórias divertidas para animar a esta menina que só quer trabalhar num lugar descente e aprender a resenhar...
BJocas querido e velho amigo, são quase nove anos de um carinho fraternalmente bem escolhido
Se cuida e mantenha-se perto sempre que possível,
Passado a sua paternidade temporária...
Tata Muchacha