12 abril 2006

Pé com Pé

Minha esposa é maravilhosa, devo admitir. Desde que a conheci me enamorei, me aproximei timidamente, fomos nos engraçando, uma coisa leva a outra, gracinha pra cá, beijinho pra lá, uma coisa leva a outra e casamos logo mais.

No começo claro que era aquela paixão, aquele afã de compartilhar toda a sua vida com a companheira, cada conquista, cada evento, cada sentimento, cada pensamento, uma interação frenética saudável meio cansativa por vezes, mas natural e necessária aos casais recém-casados. Tudo isso regado por uma vida sexual mais natural e mais saudável ainda.

Com os tempos a energia estabilizou, o casamento amornou. Não posso dizer que perdeu a graça, mas sim que mudou de marcha. Uma série de rotinas tomou lugar, cada um começou a redescobrir e reconquistar seu próprio espaço, houve um pequeno afastamento, configurando o primeiro ciclo desta constante pequena tensão que revela o segredo de um casamento, a tensão entre a aproximação simbiótica e o distanciamento necessário.

Esse vem e vai foi e veio muitas vezes ao longo de anos e mais anos de relacionamento, entre aventuras, dificuldades, filhos, amigos, desilusões, trabalhos, celebrações, bobagens, emoções e quase sem perceber cumprimos 30 anos de casados. Se com 30 de vida já nos é aconselhável avaliar bem o rumo de nossas vidas, imagine com 30 anos de casamento. Avaliei e vi que, mesmo que não fosse a mesma testosterona em metabolismo constante dos primeiros anos, ainda que estivéssemos constantemente tirando um braço de ferro aqui e um cabo de guerra acolá, apesar de todos nossos acertos e deslizes, o saldo era legal. Algo insistia que éramos felizes.

A idade trouxe o acirramento das manias, aumentou a distância, aumentou o volume dos ronquidos, acabou com a brincadeira de médico, aferrou o mau-humor ao mesmo tempo em que diminuiu a paciência, a tolerância e o número de amigos casados. Ainda assim o tempo passou como filme de ação e chegamos aos espetaculares 60 anos de casados, com filhos, netos, bisnetos e saúde suficiente para tomar conta um do outro, aposentadoria razoável, família unida, um ou outro amigo sobrevivente. O que nos mantinha juntos era um pot-pourri de amor com amizade com sentimento de família, regado por uma enorme paixão pela vida. Mas tudo isso, todo o sentimento, toda a nossa história, todas as emoções, as aventuras, as desilusões, as conquistas, as tensões, as celebrações, as bobagens, os braços de guerra e cabos de ferro, todos vinham subitamente à lembrança da maneira mais terna possível quando, após um carinhoso selinho de boa noite, ela colocava a planta do pé dela, quentinho, sob a sola do meu pé, reafirmando assim, que, ao final daquele dia, nos amávamos como sempre.


Abril de 2006

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