03 março 2006

Atrapado no Tempo


Walter Augusto voltava sempre tarde para casa. A vida era muito corrida na metrópole, dizia ele, era necessário grande controle do tempo, muita dedicação ao trabalho. Mulher, filhos e fins de semana eram uma bênção. Algumas horas por semana de sono, se tanto.

Tantos relógios tinha Walter Augusto que eu não lhes saberia contar. Contava o tempo em unidades de segundos. Marcava o médico às 07hs.43’18’’ e perguntava à secretária quantos segundos iria durar a consulta, pois tinha mil compromissos em seguida. Só nos pulsos tinha três relógios: Um para minutos pares, um para ímpares e um por margem de segurança, dizia Walter.

No banheiro, dentro do box, ao lado de um grande relógio de ponteiros à prova d’água, havia um cronômetro, e um pequeno quadro de anotações onde apontava os melhores performances no banho (ou seja, os mais curtos, é claro), de acordo com cada categoria de banho. Os mais rápidos (que giravam entre dois e quatro segundos) eram os banhos de manhã, pois ele estava sempre concentrado em chegar logo a seus compromissos e não podia ficar perdendo tempo, literalmente, com perfumaria.

Na cozinha, Walter havia tirado todos os relógios para apressar a comida, porque senão sua esposa lhe dizia que a comida não estava pronta, que o arroz precisava cozinhar 20 minutos senão ficava empapado, que a carne estava mal passada, o macarrão estava duro, e outras tantas desculpas com o claro objetivo de mantê-lo em casa um pouco mais de tempo. Uma atitude, segundo Walter, claramente egoísta.

A sala de estar, no entanto, era cercada de relógios, curiosamente com horários diferentes uns dos outros, estrategicamente colocados para poder inventar motivos para mandar visitas inconvenientes como amigos e parentes às casas, quando o faziam perder tempo com suas constantes baboseiras de família, problemas conjugais, ou ficavam metendo o nariz em sua vida... Bastava um “Opa, hora de dormir, sinto, mas tenho demasiados compromissos logo nos primeiros segundos do dia!” apontando para o relógio que constantemente apontava uma da manhã; ou levantar assustado “Meu Deus, não vi as horas passarem! Tenho que dormir para dar bom exemplo a meus filhos”, mirando o relógio das duas da manhã; outra era colocar a culpa no jantar beneficente, com o relógio das oito, tinha que buscar o filho na festa às 23hs, ainda que o filho tivesse apenas 6 anos e estivesse dormindo desde as 19hs, ou ainda o jogo do Corinthians - e Walter nem sequer torcia para o Corinthians ou para outro time, era o time que lhe viesse à cabeça... os nem tão próximos tinham certeza que ele era viciado em futebol e até tinham certeza de o haverem visto em diversas ocasiões no estádio de futebol, coisa que nunca havia feito, pois considerava perda de tempo... Assim seguia, espantando os inconvenientes que lhe tornavam difícil manter os horários de seus compromissos em dia.

Já lhe disseram louco, neurótico, obsessivo, entre outros. Walter, no entanto, se dizia feliz. Durante o último ano, inclusive, durante um dos minutos que gastou com a mulher e filhos, perto das 23hs de um domingo, por protesto da mulher que o achava muito ausente, defendeu-se clamando que era o homem do futuro, organizado, produtivo, eficiente, havia faltado menos de metade dos 16 aniversários da filha, e nunca havia esquecido um presente de natal. Contava, para confortar a família, de um sujeito, que por estar muito ocupado com seus afazeres, não havia conhecido a própria filha até o aniversario de 11 anos daquela (ao contar esta história, não conseguia esconder um sorriso de admiração pelo amigo, que, na verdade, era seu chefe) e ainda assim era muito amado pela menina, que lhe havia enviado por SEDEX vários relógios de presente, relógios calculadora, relógios com jogos, alguns ROLEX, relógios com dezoito alarmes diferentes (esses eram os preferidos do referido pai e causavam a maior inveja nos colegas de trabalho, enquanto ele dizia com maior orgulho: “Foi minha filha... er... como é o nome dela? Bom, foi minha filhinha que me deu!).

Dessa maneira, mergulhado no cotidiano, Walter Augusto seguia sua rotina pulando, minuto a minuto, da hora do almoço à hora do jantar, da hora de levantar à hora de dormir, à hora do avião, à hora de sair, de fazer, sonhar, esquecer. Hora de perder, hora de deixar, hora de calar. Hora da hora de hora porque o relógio dos minutos pares da hora que Walter Augusto no meio das horas e minutos e horários e segundos e Walter foi se perdendo e sua cabeça rodando, foi colapsando, minutos do dia em que horas e segundos dos horários dos compromissos e rodava sua cabeça e Walter Augusto foi se perdendo mais, colapsando, olhos abertos ou fechados, relógios, somente relógios, digitais, analógicos, ampulhetas, cronômetros, o relógio de seu banheiro lado a lado com o Big-Ben, tiquetaqueando freneticamente diferentes pulsos, não via nada além, não se podia mexer, desesperou, desmaiou.

Acordou tempos depois, ninguém sabe quanto tempo na realidade, em um ambiente do qual não se recordava bem, ainda tonto, pensando freneticamente e às voltas com o tiquetaquear dos relógios à sua volta. Um velho gordo com cara de cansado e malcheiroso ofereceu ajuda, mas ele saiu correndo pela porta mais próxima e deu de cara com outros relógios. Voltou e tentou a outra única porta, já fora de si, desesperado, correndo ofegante com sua barriga saindo para fora da camisa de botões apertada, manchada de suor sob as axilas, e trombou com novos e variados relógios. A despeito da resistência do velho desdentado que o havia tentado ajudar e que agora o tentava impedir, começou uma batalha solitária contra os relógios em torno. Tomou uma vassoura ao melhor estilo Dom Quixote, e desferiu inúmeros golpes, aqueles que seu patético corpo de atleta de escritório podia permitir, acertando os relógios um por um, na intenção de acabar com o tique-taque que o deixava louco.

Logo percebeu, no entanto, que, por mais que destruísse relógios, sempre haveria outros, e que o tiquetaquear era quase um mantra constante que invadia sua cabeça através das orelhas, que não diminuía conforme ele ia destruindo as inocentes máquinas. Percebeu que fazia parte de algo maior e saiu a explorar. Perdido, voltou-se ao velho escarrado no canto da sala, com suas barbas azuis longas e sujas, e humildemente perguntou-lhe: “O Senhor tem um minuto para me ajudar?”. É claro que pediu logo um minuto, pois previa que um segundo não seria suficiente para esclarecer sua cabeça confusa ziguezagueando entre tiques e taques.

- Você não percebe onde está? Olhe à sua volta.- O velho falou, sorrindo com suas gengivas.

- Pois é a minha volta que me confunde!!! Por que tantos relógios? Por que esse som interminável de tiques e taques não diminui quando destruo estes relógios? O som não vem deles? – Perguntou ansioso Walter Augusto.

- Você responde a suas perguntas – lhe contestou o velho sem alterar sua fisionomia.

- Parece que há algo maior, seria... Seria uma espécie de Deus relógio que rege o tempo? – concluiu titubeante Walter

- Pense mais além... – seguiu o misterioso velho de barbas azuis.

- Eu destruo e destruo relógios e nada sucede. O tique taque segue como se não fizesse a menor diferença o que acontece com os relógios... Será...

Walter começou a observar, agora de uma maneira diferente que antes, com uma atenção especial, introspectivo, fechando os olhos, tentando sentir aquele mantra, aquele ambiente uniformemente disforme, com tantos relógios e tiques e taques que chegava a conjugar uma unidade. Os milhares de sons dissonantes passavam a ser um tom, um tom específico de certa desordem que Walter estava começando a desvendar.

Ele começou então a olhar individualmente cada relógio de perto e, detendo-se por longos instantes, sem ansiedade, sem afobação, Walter passou a perceber características humanas nos relógios. Um era mais gordo, bonachão, outro comprido e alto, com um tique-taque estridente. Um era elegante, refinado, inglês, até suas badaladas tinham sotaque bretão, outro era bem latin lover, com seu charme desengonçado, seus ponteiros afiados, porém sempre adiantado.

Walter começou a sentir-se mais cômodo, passou a cumprimentar os relógios, deter conversações por vezes, chegou inclusive a sentir atração por um swatch muito simpático que aparentemente não tirava os olhos dele. Walter sentia-se em casa, apesar de uma estranha casa, ao mesmo tempo que não compreendia totalmente o que estava acontecendo. Aparentemente, ao deparar-se rodeado de relógios, não sentia mais pressa, não se preocupava mais com o horário, seja ele em horas, minutos ou segundos. Sentia uma paz, uma plenitude, nunca dantes experimentada. Walter pela primeira vez em sua vida respirava fundo, até o fim mesmo dos pulmões, olhou o horizonte mais profundo e gozou. Teve um êxtase praticamente espiritual, e sentiu que o mantra que vinha ouvindo e agora já fazia parte da paisagem, nada mais era que o tempo único, da vida, um ciclo constante de idas e vindas, idas sem vindas, era o tempo unificado de cada um daqueles relógios com seus tique-taques aparentemente desordenados, caóticos, e cada um daqueles relógios era um ser humano. Tudo começou a fazer sentido para Walter Augusto naquele estranho novo mundo, exceto por uma coisa.

- E o senhor, então, quem é? – perguntou ao velho com ares de desconfiado.

O velho então aumentou seu sorriso, mostrando o resto das gengivas que lhe faltava exibir e gargalhou, enquanto puxava um grande espelho, erigindo-o de encontro a Walter:

- Eu sou você!!! Há, há, há!!!!- grasnou o velho com sua voz de corvo.

Quando o espelho confrontou a imagem de Walter, ele viu que havia transformado-se em um relógio velho, de madeira podre e ponteiros tortos!!! E que ainda por cima estava atrasado.

Walter então gritou como nunca havia gritado, sujeito controlado que costumava ser. Sentia que não podia mais mover-se a gosto, pois não tinha pernas. Não podia agarrar coisas, pois não tinha braços. Enfim, Walter havia transformado-se ele próprio em um relógio. Olhou para o lado e percebeu que aquele swatch já o estava mirando de maneira mais mal-intencionada, enquanto o velho gargalhava deliciosamente e se afastava. Repentinamente os tique-taques voltaram a ser desordenados e ruidosos, o pânico voltou a tomar conta do corpo (corpo?) de Walter e seu desespero crescente culminou em uma atitude radical: Walter parou.

Walter fez o próprio relógio parar, não se sabe como, nem ele sabe. Isso causou uma fúria enorme ao redor. Todos os relógios começaram a olhar para Walter com rancor, até mesmo os relógios mais dengosos, como o da Barbie ou aquele dos ursinhos carinhosos, pareciam monstros naquele momento. Um grande vento se abateu, uma luz fria e forte invadiu o ambiente, o tiquetaquear foi aumentando seu ritmo impetuosamente, provocando uma tortura quase insuportável, mas Walter resistia pois era o único jeito que podia imaginar de romper aquela ordem.

Ouviu-se então um enorme estrondo metálico e todos foram ao encontro de Walter Augusto, que estava bem embaixo do pêndulo gigante que estavam armando para o relógio da praça principal, o qual havia caído exatamente por onde Walter estava passando naquele mesmo instante, afundando-o contra o solo.

Walter Augusto então levantou-se, como se nada houvesse acontecido, quando muitos queriam arrastá-lo ao hospital, e foi direto ao trabalho, alegando que tinha um compromisso e que já estava deveras atrasado.

Janeiro de 2002

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