08 março 2006

Vida de Vila

Estava a caminho da locadora, percorrendo a Wisard, quando topei com uma boa amiga que, perdida no meio da rotatória, não decidia se atravessava, esperava, saía correndo ou gritava, quando eu cochichei “psiu, psiu...” de dentro do carro... Fazia exatamente um ano que havíamos nos formado, graduado compartilhando classe e trabalho de graduação e um ano que não nos víamos até que nos encontramos aquela noite, dez da noite, para descobrir que ela estava morando exatamente na janela em frente ao meu próprio apartamento, separados apenas pela outrora pacata rua Fidalga.

Passado o susto e toda a sucessão de imaginações que atravessaram a mente de minha amiga escaldada em uma Vila que não conhecia bem, moça oriunda de Sertãozinho e recebida pela zona sul desde sua chegada, não hesitamos em esticar o papo. Ainda mais abordada aos gritos à noite por um barbudo descabelado em um carro caindo aos pedaços.

Ela iria comprar cigarros. Eu, devolver o filme.

Paramos em frente ao bar onde o garçom cujo nome não me recordo (e talvez não queira recordar, apenas pelo folclore) trabalha há muitos anos. Chamei-o pelo nome que ele me atende: Leonardo, um dos ‘tartarugas ninja’ e ele veio me acudir no carro, naquela segunda-feira aparentemente insossa. Não só ele tinha os cigarros, como nos trouxe a bordo e ainda trocou dez.

Fomos à locadora recuperando histórias e acertando o presente. Devolvemos o filme sem maiores novidades e subimos ao meu apartamento para tomar um suco e compartilhar as histórias com minha mulher. O suco deu origem ao chá, seguido de alguns petiscos e a conversa foi embora, inocente, porém com muita graça.

Ao fundo, o som de uma jam session dessas que animam praticamente todas as esquinas da Vila praticamente todos os dias da semana, conservava nosso aparelho de som calado. Um cachorro qualquer uivava. No tom.

Descobrimos o quanto nossas vidas tinham rodado com enorme amplitude, ainda assim nos levando a um espaço físico tão próximo. Falamos sobre os colegas que sobreviviam no cotidiano, falamos sobre os colegas que sobreviviam no coração. Falamos das aventuras e desventuras dos dois recém-formados, falamos de pensamentos e sentimentos, e ouvimos a chuva principiar.
Toca o telefone e um bom amigo que também vive em nossa rua convoca para um samba de qualidade em um bar na rua de cima, no domingo. Domingo que é dia de tédio ou depressão na maioria dos países, das cidades, dos bairros, na Vila tem samba. Aproveito o ensejo para convidar minha amiga, que não gosta de samba, mas gosta de vida. Este foi meu argumento para convencê-la sem mais. Minha mulher, animada, começou a se agitar e listar alguns amigos solteiros que seguramente estariam presentes e poderíamos apresentar a ela. Demos alguma risada.

Perguntei à minha amiga o que a trazia à Vila e ela culpou o acaso. Uma pena, pensei. Ou uma sorte.

Perguntei na seqüência se iria ficar por tempo limitado. Disse que estava de favor enquanto procurava algo na Vila Nova Conceição. Descobri, sem muito esforço, que aqui estava se recuperando de uma severa crise emocional. Descobri que estava freqüentando algumas facilidades da Vila como a Yoga, a feira da Mourato Coelho e um par de restaurantes que a tinha apaixonada. Uma pena, pensei novamente, achando que ela iria gostar da Vila...quem gosta de vida, gosta da vila.

Algumas semanas depois, percebi, ao olhar a janela em frente, que ela não mais estava hospedada com a amiga. Justo quando chegava a primavera.

Abril de 2002

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