08 março 2006

PUTA SEM-VERGONHA DESGRAÇADA MALDITA"

Muita gente anda dizendo que o mundo anda meio esquisito, cada um com seu relato pessoal. Sou obrigado a concordar, e a relatar meu próprio caso.

Estava andando em uma rua ordinária entre minha casa e o ônibus, me sentindo estressado. Naqueles tempos de cidadão comum, assalariado, atolado de problemas financeiros, insatisfeito em casa, insatisfeito no trabalho, insatisfeito na rua, sentia a pressão da sociedade por aquilo que chamam de 'sucesso'. Ainda por cima era um dia quente e estava atrasado novamente. Chegando ao ponto me deparei com uma mulher que discretamente retocava a maquiagem enquanto esperava a condução. Inexplicavelmente veio-me um ímpeto incontrolável de gritar, sem mais ou menos: "PUTA SEM-VERGONHA DESGRAÇADA MALDITA!!!" desse jeito assim, sem vírgula nem reticência. Pronto, pensei, lá vem bolacha na bochecha, e fiquei imaginando se ela era destra ou canhota para preparar mentalmente a face correta. Já via a cena toda acontecendo, todos no ponto se revoltando, ela me desferindo um sonoro bofetão na madeixa e dando-me as costas com a elegância das pudicas mulheres quase-católicas.

No entanto, para a minha estranheza – para não dizer de certa forma uma desilusão – ela não reagiu violentamente. Me mirou com uma cara de cachorro abandonado e desandou a chorar, pedindo-me mil desculpas, que eu tinha toda a razão e que ela iria mudar, prometo e tal. Achei esquisito.

O fato é que de alguma maneira o ocorrido me animou e, sempre que estava nervoso, descarregava com a primeira donzela que apontasse em meu caminho, não importava o calibre: gordas, magras, ricas, pobres, prostitutas, evangélicas, jovens, velhas, enfim, quando sentia necessidade, soltava indiscriminadamente meu mantra à primeira que cruzasse meu caminho: "PUTA SEM-VERGONHA DESGRAÇADA MALDITA!!!" e deleitava-me com a reação das mulheres, todas desculpando-se, mesmo as mais confiantes, as mais metidas, tímidas ou desavergonhadas.

Não sei explicar que diabos era este fenômeno, se as mulheres têm uma culpa inata por conta de algum resquício de nossa sociedade machista ou da predominância católica no país, se era algum outro fenômeno sociológico mais complexo ou se simplesmente minha ira era tamanha que não houve uma sequer que ousou suspeitar de que meus desabafos eram inverdades.
Sem limites, comecei a metralhar minha própria família: mulher, filha, mãe, tia... foi quando me dei conta que o exagero poderia causar problemas psíquicos quiçá irreversíveis e eu nunca mais conseguiria me relacionar de forma saudável com uma mulher sem xingá-la, inconteste: "PUTA SEM-VERGONHA DESGRAÇADA MALDITA!!!". Me retirei a um afastado recanto na serra, em meio à natureza e com um acompanhamento psiquiátrico para tratar o estresse e retomar minha vida normal, em que as mulheres não eram todas putas sem-vergonhas desgraçadas malditas.

O que eu não podia ter imaginado era que, na minha ausência, a coisa se tornou uma mania e todos os homens da cidade começaram, pouco a pouco, a extravasar suas tensões na cara das mulheres que, conforme já vimos, retornavam em choro, lamentos e desculpas. Não sei se foi um ou outro amigo para quem eu havia contado e gostou da idéia ou alguém que viu o que eu fazia e fez igual, ou se saiu em algum telejornal ou programa de comportamento da MTV, mas a mania pegou pra valer:

Patrão xingando secretária: "PUTA SEM-VERGONHA DESGRAÇADA MALDITA!!!"

Funcionário xingando a chefe: "PUTA SEM-VERGONHA DESGRAÇADA MALDITA!!!"

Filho xingando mãe; criança xingando velha; o âncora do telejornal xingando a âncora do telejornal; ator xingando atriz no meio da peça de teatro para delírio da platéia; motorista xingando a oficial de trânsito sem tomar sequer multa; torcedor xingando a mãe do juiz; todos as categorias de homens tratavam as mulheres por putas sem-vergonha desgraçadas malditas sem o menor pudor.

Recém-chegado de meu tratamento, aquilo tudo me pareceu insólito e até fiz duvidar de mim mesmo quando lembrei que tinha sido eu mesmo quem havia inventado esta burlesca expressão.

Finalmente cheguei à casa, onde minha mulher me esperava com meu favorito bolo de fubá e cara de boas-vindas. Havíamos nos falado muito pouco durante meu retiro por recomendações médicas. Ao me ver entrar na casa ela sorriu, enquanto eu a cumprimentava com doçura: "Boa tarde, querida, como vai?", abrindo um sorriso e cerrando os olhos esperando um saudoso beijo quando fui presenteado com um sonoro bofetão com o verso da mão aberta na madeixa direita.
Quando dei por mim, assustado, enquanto a ouvia reclamar como eu podia ser tão desrespeitoso e vulgar, recuei e abri os olhos apenas para vê-la elegantemente dar-se a volta, empinar o nariz e marchar, com o orgulho ferido, resmungando baixinho para si: "Ora, justo eu, a maior das putas sem-vergonha desgraçadas malditas...".

São Paulo, fevereiro de 2004

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