02 março 2006

Encontro

Entrava na rede diariamente. Minha vida era uma merda. A rede era um refúgio como um sonho, como se fosse possível entrar não apenas na pele, mas na mente, no espírito, incorporar completamente um destes personagens que você admira e almeja ser igual. Só assim poderia ser como certas pessoas, as quais da maneira que se portam – ao menos a parte do tempo que você as vê – não têm defeitos, problemas, diarréia, espinha e calo no pé. Como aquele líder no colégio que joga futebol na meia direita e come todas as meninas apesar de namorar apenas uma: a mais bonita. Ou aquela menina que, além de linda, líder e perfeita, brilha, com um certo brilho nos olhos azuis que eu não sei se é inato ou se se constrói polindo o olhar com algum produto que só se vende a estas pessoas especiais.

Eu nunca fui especial. Em todos os ambientes por que passava conseguia a façanha de ser um completo anônimo. Eu sequer conseguia ser medíocre, sempre mediano. Como conseqüência nutria inveja não apenas dos belos e bem sucedidos, dos líderes, dos que brilhavam, mas também dos medíocres, já que de sua própria maneira os medíocres eram também especiais.

Ainda assim, com esta realidade deprimente e insossa, nem revolta eu tinha, eu era apenas um cara que levava um dia após o outro, sem muito sonho nem ambição, não era bom nem mau, não era cheio de vida nem suicida. Não era destes que se faziam piquete contra os valores da sociedade maniqueísta que celebra uns em detrimento do coletivo, como em uma eterna brincadeira de polícia e ladrão, mocinho e bandido, herói e vilão – como se não houvesse quase ou talvez. Não conversava com os amigos nem fazia terapia para tentar resolver algo, pois para mim não era nem mesmo um problema.

Tantos grupos e tribos pelos que passei foram os quantos a que emprestei minha indiferença, e os mesmos quantos que não me viram por eles passar. Primeiro eram os tais jogadores de futebol e as meninas com brilho no olhar. Depois vieram aqueles das atividades extra-curriculares, o judô, a natação, a turma de escoteiros. Um cara sozinho tinha ganho todas as medalhas de honra ao mérito desde que éramos lobinho até o último grau, e parecia que nem fazia esforço. O pior era que eu nem sequer conseguia ser amigo dele ou do capitão de futebol. Talvez porque nem tentasse.

Então veio a faculdade e as categorias de líderes se subdividiam: por desempenho (os políticos, os esportistas, os intelectuais, os que desenhavam ou escreviam bem e os que brigavam bem); por posse material (os que tinham belos carros, belas roupas, uma casa na praia, uma calculadora importada ou até um belo material escolar e compravam todos os livros novos em vez de comprar no sebo ou fotocopiar como eu o fazia); havia ainda os que tinham algum tipo de destaque por valor agregado (belas mulheres, belo corpo, uma bonita caligrafia que fosse). Eu observava, cada vez mais humilhado, como todos tinham mais que nome, tinham um aposto: "Fulano, que desenha caricaturas do professor!" ou "Ciclano, o centroavante canhoto." Ou ainda algo mais besta como "a nariguda do terceiro ano". Eu não tinha sequer um defeito que me identificasse. Meu nome era convencional, sobrenome comum. Nunca sequer me brindaram com um apelido, o que faz todo sentido, pois não havia como destacar uma qualidade, um defeito, uma habilidade ou uma torpeza que me fizessem famoso, eu simplesmente era. Era sem ser nada de mais ou de menos.

Logo veio a carreira profissional e me deparei com os mesmos personagens e as mesmas questões. Diferente de uns colegas geniais e outros fracassados, não ficava de fora nem dentro. Não tive que passar por mil entrevistas para conseguir finalmente meu primeiro emprego, tampouco fui promovido com rapidez. Não fiquei rico nem passei fome. Virei um típico burguês sem graça com suas necessidades fisiológicas e mundano-sócio-culturais satisfeitas por um salário razoável e uma vida segura e suficientemente regrada. Não tinha vícios nem fraquezas demais. Era, novamente, convencional.

A impressão que eu tinha era de ser uma gota num imenso oceano. Não era nem da superfície nem profunda, apenas uma gota intermediária, que não ajuda nem atrapalha. E o era, efetivamente. Ás vezes penso que não fosse pelas tantas gotas que compõem o oceano, não existiriam as gotas da superfície ou das profundezas, que parecem ter mais personalidade, se destacam do resto do oceano. Sem estas gotas "operárias" não haveria como as célebres gotas da superfície formarem belas ondas (ou catastróficos tsunamis), nem como as gotas viajantes do fundo comporem as correntes climáticas. Ainda assim eu sentia que havia gotas e gotas. Mesmo entre as intermediárias havia umas e outras que se diferenciavam. Eu não compunha nada, eu não tinha papel, não tinha uma identidade, nem como gota, menos ainda como gente.

Ainda assim nada disso parecia me incomodar e eu seguia sendo o mesmo bosta em todas as situações. Então apareceu na história da minha geração a Internet. Na rede eu encontrei a possibilidade de viver de novo e entrar em tantas micro-sociedades quantas quisesse em busca de um papel relevante, uma liderança qualquer, buscar em mim algo diferente, abrir um blog, qualquer coisa. Tanta gente entrava com diferentes nomes, incorporava a própria idealidade em busca de um Eu que não era possível e, de repente, este novo Eu era tão bacana que a pessoa deformava sua personalidade tornando-se o próprio alter-ego. Muitas vezes tais mudanças não duravam, mas as conseqüências eram, no mínimo, interessantes.

Eu havia tido muitas oportunidades de começar de novo nos tantos grupos dos quais fiz parte, mas estranhamente não queria ser outra pessoa, em todas as comunidades, sociedades, núcleos ou tribos dos quais fiz parte em alguma medida, fui o mesmo ser invisível. Na rede, sem embargo, eu poderia ser outra pessoa sem deixar de ser eu mesmo na vida "material", no contato físico com as pessoas. Eu acreditava que esta separação mediada por uma máquina me causava um tipo de distanciamento que me permitia ligar de desligar o módulo de mudança de identidade da mesma maneira que ligava e desligava o computador ou conectava e desconectava na rede. Assim eu poderia experimentar outras viagens sem ter que arriscar qualquer tipo de emoção ou mudança de personalidade. Ou seja, poderia continuar o mesmo idiota de sempre após o off.

Convencido de que não estava colocando minha personalidade apagada em xeque, comecei a experimentar apelidos, acessar salas de bate-papo, aos poucos fui construindo um alter-ego sólido online e lograva seguir indiferente no mundo offline. Isto me fazia de alguma maneira feliz, apesar de que não era exatamente felicidade o sentimento, era algo muito mais suave, era como um meio-sorriso, aquele de quando você está cheio de problemas e alguém te faz uma piadinha que ameniza a dor por um instante. Uma alegria que é egoísta porque não serve para contagiar os outros e miserável porque não é relevante suficiente para gravar qualquer memória. Serve apenas para fazer aquele meio-momento um pouco mais suportável.

Elaborava as características físicas e emocionais na medida que se faziam necessárias, parti apenas de um perfil básico daqueles caras que acabo de descrever. Meu avatar era bem-sucedido, popular e tal, como aquele pessoal da escola e dos outros lugares que freqüentei. Estranho, porque nunca quis ser igual a estes personagens, mas na hora de me reinventar foi o que saiu.

Saí pela rede em largos passeios conhecendo gente em distintos ambientes, salas mais ou menos elaboradas, gente que devia estar dizendo a verdade, gente que também estava mentindo. Eu não ligava para nada do que era ou não verdade, afinal no final iria apagar o monitor e logo nada mais daquilo faria diferença. Conversava sobre qualquer assunto a qualquer hora que estivesse disponível. Não me considerava viciado, nem me causava tanto prazer como já disse, mas passava o tempo bem melhor que programa dominical de televisão aberta.

Não gostava de criar vínculos com os outros internautas. Achava as pessoas muito carentes e fracas. Aquilo para mim não era vida. Curiosamente, em vida eu era especialmente carente e depressivo, mas não deixava transparecer, pois não queria mudar, não queria terapia, não queria mulher e filhos. Se a conversa durasse muito ou os interlocutores começassem a perguntar coisas muito pessoais eu logo inventava novas mentiras ou simplesmente fechava a janela sem mais, sem adeus nem até breve, sem trocar telefone nem e-mail. Quantas vezes na vida eu desejei ter o poder de desligar-me assim, tão fácil, em um clique de mouse, apertar um botão e aquele cara pentelho não está mais na sua frente, não ter que dissimular, fazer cara de contente ou acenar com a cabeça em sinal de aprovação muito embora não estivesse ouvindo nada.

Um desses dias na rede estava conversando com um cara que me pareceu interessante e não entendia bem por quê, mas me senti muito mais envolvido. Eu não entendia nem me importava se ele tinha algum interesse escuso ou se apenas conversava, eu queria era conhecê-lo mais e mais. Nunca entramos em detalhes físicos, acredito que o negócio eram as palavras. Mesmo contra todos os mandamentos que me norteavam na rede – os quais eu mesmo havia inventado – comecei a construir uma relação no mundo digital, conversando largamente, marcando encontros e trocando sentimentos.

Não sabia o que era que me atraía. Não sabia o que me fazia continuar interessado. Nunca havia passado este tipo de emoção nem com uma pessoa, nem com um livro, nem com um cachorro que fosse. Era uma entrega deliberada, e aos poucos fomos entrando em intimidades que eu nunca havia compartilhado antes. A princípio me custava um pouco porque dava trabalho ficar inventando todas aquelas mentiras sobre meu avatar. Com o tempo fui incorporando a personagem e o jogo ficou mais natural. O que era estranho era o que tinha naquele personagem que me fazia querer conhecê-lo tanto?

A princípio pensei que poderia ser algum princípio de atração física – o que para mim não faria diferença alguma – mas não tinha nenhum apelo sexual na relação, era definitivamente outro tipo de atração. Comecei a identificar que aquele sujeito tinha traços familiares: seus gestos, seu modo de escrever, de descrever. É como quando você reconhece alguém muito ao longe pelo jeito como caminha, mas ao mesmo tempo você sabe que é mais que isso, que você reconhece aquela atitude, aquele ar, aquele movimento de braço ao longe, todo um emaranhado de indícios que te fazem concluir irrelutante que conhece aquela pessoa.

Os modos de ele falar, suas reflexões sobre a vida, as poucas características físicas soavam muito próximas. Ele me respondia exatamente como eu responderia. Eu me sentia capaz de escrever um diálogo completo antecipadamente e fazer as perguntas na sala de bate-papo, que as respostas já estariam previamente escritas em meus esboços. Pensei se não era algum amigo, possibilidade que foi muito fácil de descartar porque não eram muitos os amigos. Logo pensei se não era algum familiar, mas não consegui identificar ninguém. O mesmo com companheiros de trabalho, colegas de faculdade, conhecidos em geral. Até que eu percebi que era mais próximo que simplesmente "alguém": o que me parecia familiar eram coisas mais profundas que os jargões ou erros de português recorrentes. Mais profundas inclusive que as poucas descrições físicas que eu tinha lido na tela outro dia quando o assunto veio à tona. As características que eu identificava eram da personalidade mais íntima, tão íntima que eu poderia adivinhar o que era que ele iria digitar em seguida. Sabia a resposta no ato em que eu mesmo fazia a pergunta. Fui me dando conta que ele era muito parecido comigo.

Suponho que foi tão difícil perceber o quanto se parecia comigo mesmo pelo pouco que eu refletia sobre minha própria vida. Eu não tinha o costume nem sequer de olhar a cara no espelho, quanto mais as palavras. Nunca havia feito terapia, não rezava nem confessava, não tinha amigos para beber e trocar segredos de botequim. Aquele sujeito era o reflexo do que eu tinha de mais íntimo, da minha personalidade mais enterrada na natureza dos meus gestos, da racionalidade mais pessoal de minhas decisões. Obviamente fiquei assustado, assombrado, intrigado e um monte de outras emoções que não conhecia ou não lembrava, provavelmente não as tinha desde a infância. Seguramente nunca as havia tido todas juntas de supetão como naquele momento.

Convivi durante um tempo com esta estranha emoção, sentimentos fortes e desordenados, algo que nunca me havia atingido em minha completa obscuridade. Senti-me mobilizado, curioso, inquieto, no afã da descoberta de algo especial. Este algo poderia ser eu mesmo. Este espelho virtual incrível poderia me revelar grandes coisas, verdades profundas sobre mim mesmo. Meu interlocutor era um oráculo de mim mesmo.

Muitos poderiam ficar maravilhados, deslumbrados com a situação. Filósofos e psicólogos iriam à loucura, artistas seguramente a encontrariam como fonte de inspiração, cientistas tentariam explicar a coincidência – já que não acreditam em coincidência –, e capitalistas arrumariam alguma maneira de transformá-la em lucro. Por algum tempo pensei sobre como deveria lidar com isto, que bem poderia fazer para mim, para os próximos ou, quem sabe, para a humanidade? Ao mesmo tempo que me sentia insuflado, ofegante, com as pupilas dilatadas na adrenalina da descoberta de mim mesmo na rede e especulava sobre o que fazer, como reagir, como lidar com este fenômeno, continuava conversando e descobrindo mais e mais como realmente aquele sujeito era este. A adrenalina foi crescendo junto em quanto mais ousadas se tornavam minhas especulações. Fiquei dias sem dormir, sem comer, sem trabalhar e sem desconectar. Não atendia o telefone, não ligava o televisor, não levantava senão para as necessidades fisiológicas, se muito.

Foi então, no auge do cansaço e do descompasso, quando me encontrava desesperadamente sem forças e que parecia não haver luz no fim do túnel, que me veio a resposta de uma maneira muito clara e inquestionável. Foi como uma luz divina, uma daquelas revelações que não se pode explicar muito bem como sucedeu, porque não veio através de palavras ou gestos, mas nasceu e floresceu dentro de si. Depois de pensar sobre as tantas maneiras de lidar com a descoberta de meu ego digital, desde as pequenas coisas até as soluções para os problemas do mundo, após me embriagar de corpo e alma comigo mesmo em versão virtual, uma última chispa de energia me vestiu. Fatigado, porém sereno, movi lentamente o mouse, fechei a janela. Em seguida desliguei o computador.

Resolvi nunca mais me conectar: a obscuridade era mais fácil, eu não precisava ser nada, apenas ser. Não é suficiente? Dentro de minha completa opacidade social eu não tinha a responsabilidade de brilhar, de resolver grandes questões da humanidade, ou sequer pequenas questões do condomínio de meu edifício. A vida para mim era apenas vida. Cada momento cinza desta vida era um momento neutro, um momento a mais que eu havia sobrevivido. E isso era tudo. E isso era suficiente. Por quê se há de dramatizar tanto a vida no final das contas? Decidi que a vida é mais simples que lutar, mudar, aperfeiçoar, evoluir, isso tudo vem naturalmente, não há que haver pressa, competição ou superação. Deixe-me estar.

Doei o computador. Joguei fora todos os espelhos da casa. Fotografias eu já não tinha mesmo. Voltei a me preocupar com nada senão descobrir outra maneira de estimular novamente aquele meio-sorriso, e viver meio-momento a mais.

Janeiro de 2005

Nenhum comentário: