05 março 2006

O Flerte e os Bolinhos de Chuva

Não costumo andar muito de metrô, pois sempre estudei ao lado de onde morava, com meus pais na zona oeste, e não carecia transporte. Na faculdade onde estou, tenho dois colegas que revezam sua paciência em me aturar no caminho até São Bernardo, onde curso veterinária. Caminho bastante a pé e meus amigos, em geral, moram na redondeza.

Naquele dia, porém, ia visitar uma tia-avó que me era muito querida desde a infância e havia me convidado para um chá. Dia de sábado, resto de sol quente se pondo, e um metrô muito aquém da movimentação megalopolitana usual em dias de labor me levava até meados da zona leste, outro lado da cidade, onde a tal tia me esperava com um toddy muito doce e dedinhos de manteiga ou bolinhos de chuva - essas coisas que só os mais velhos ainda fazem, apesar de todos, não importa a idade, gostarmos.

Entrei no metrô e imediatamente uma série de coisas começaram a chamar minha atenção. Não sei quanto aos usuários assíduos, mas para quem anda apenas de vez em quando no metrô como eu, os passeios são muito interessantes e bastante contemplativos. Pessoas de toda sorte, classes sociais distintas, idades mil, amigos, amantes, parentes, carentes. Isso para não mencionar os cortes de cabelo... sim, porque se um dia alguém quiser alguma inspiração para figurino de Almodóvar, basta passar um dia no metrô de São Paulo, entre os rappers, manos e hip-hopers, entre os operários, secretárias, prostitutas, playboys, patricinhas e desempregados, drag-queens, padres e estudantes, como eu: cortes que variam de volume, tamanho, cor, textura, cheiro, quantidade ou escassez, combinando com as vestimentas igualmente variadas em tons, cores e texturas.

Foi bem no meio dessa babel de cabelos – em um dia particularmente prolífico – que encontrei justamente um rapaz sem cabelos. Cabeça lisa, perfeita, brilhante, negando através da pequena subversão à moda uma vaidade inerente. Um rapaz moreno bonito, discreto, cabeça baixa, aparentemente absorto, porém atento. Vestindo camisa pólo bastante usada e sapatos que há tempos não vêem graxa, ele me chamou a atenção.

Comecei a observá-lo com maior interesse e não pude deixar de notar um olhar tímido em minha direção, com a cabeça igualmente baixa e um pequeno sorriso escondido. Eu hesitei um pouco, mas com o tempo e com a insistência daquele olhar, eu retribuí o sorriso. Pouco a pouco vinha superando a timidez que me corroera as tripas na adolescência e em boa parte da juventude, e tinha me dado conta de que eu havia deixado de aproveitar muita coisa porque não esticara o braço para agarrar com força a oportunidade. Tudo por conta da timidez.

Continuei fotografando a paisagem, agora com escala obrigatória nos olhos também tímidos do meu menino, que disfarçava, mas me observava. Entra passageiro na estação da Sé, desce passageiro na estação da Luz; vendedor de cocada vende bala compra passe faz foto, pedinte pede Real, bêbados pedem perdão, crianças desacompanhadas pedem passagem. Entraram e saíram vermelhos políticos, verdes artistas e amarelos vaidosos. Passaram guardas, cachorros e bicicleta; cidadãos comuns, de engravatados a sem-camisa, esportistas, camelôs, velhinhos lendo reader’s digest; moças gordas com bundas de Nélson Rodrigues; moças magras com bundas com sotaque francês. Eu permaneci, com meu menino em vista, vez por outra arriscando o tal sorriso.

Em meio ao flerte, ignorei a má educação do jovem que escarrou a meu lado, ignorei os assovios e palavras chulas de um grupo de moleques, esqueci do fim de calor do fim de tarde e finalmente passei a estação em que deveria descer ao encontro dos bolinhos de chuva. Esqueci onde estava, aonde ia. O tempo passou, muitas estações passaram, meu menino continuava imóvel e minhas emoções começaram a entrar em erupção, incontroláveis. Meu pensamento decolou fugaz e mil situações românticas me vieram à cabeça. Situações do passado vinham ilustrar o que eu queria fazer no futuro, uma velha chama escondida voltou a inflar meu peito, trancado havia muitos anos, e senti minha pele mais colorada, diferente do tom branco 'OMO dupla ação' habitual.

Mais estações passaram. Todos os tipos descritos foram abandonando o vagão e, após certo tempo, ficamos sós. Meu coração, neste momento, já estava em algum lugar do esôfago, o cérebro tinha dado tilt, o branco havia retornado em forma de suor frio, congelando todos os movimentos possíveis imagináveis para aquela situação: a sós com meu menino, que me fitava cada vez mais ousado. Quedei imóvel, aguardando o próximo ato, solenemente deixando o tempo passar.

Ele então se aproximou, meu menino, passo a passo a passo, lento, soberbo e ingênuo ao mesmo tempo, meu menino, sorriso já estampado na cara, leve ginga de malandro brasileiríssimo e eu, quase surtando, comecei a ponderar como seria sua aproximação: seria graciosa, com um cumprimento do tipo “Bom dia.”; seria torpe, atrapalhada como “Oi... er... tudo bem?...”; seria chauvinista, insegura, como “Você tem horas?”, acompanhada de um pigarro; seria um típico chavão tal qual “Você anda sempre nesta linha?”. Fiquei horas imaginando, ainda que foram poucos segundos durante os quais ele atravessava os sete assentos que nos separavam. Então ele fixou seu olho no meu, congelando automaticamente minha espinha, e, sério, com uma frase, originalmente distinta das que eu havia imaginado, me apaixonou:

- Isto é um assalto!

Agosto de 2003

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto cheio de humor, surpresa e cunho social. Gostei, bom de ler o Aloisio, um brasileiro como nós, aventureiro, saudosista, imbuído de um romantismo que já e ainda é um fantasma que nos faz acreditar.
Forte abraço , Aloísio