03 março 2006

O Cupido e a Azeitona

Repartição pública tem suas peculiaridades. É sempre um ambiente de muitas histórias, boatos e fofocas à la carte, gente diferente convivendo em instável harmonia. Todos estão lá há muito tempo, restando uma das duas alternativas: ninguém mais se agüenta ou são todos excelentes amigos. Por vezes ambos. Pouca novidade.

Lá na Casa Verde não era diferente: todos conheciam a todos, o clima era de tédio. O pessoal até apelidou o trabalho de “Repetição Pública”, tamanha era a rotina e a mesmice do trabalho e das pessoas. Não havia grandes segredos, não aconteciam grandes eventos, a última notícia que causou alguma euforia nas pessoas fora um assalto na rua de baixo. Ninguém havia visto nada, mas, ao menos, significava algum assunto novo na hora do café.

Nesse contexto, vivia Arnaldo, um funcionário extremamente dedicado, porém sem brilho, muito tímido. Seus grandes feitos nunca eram reconhecidos, já que as pessoas em volta o ofuscavam, roubavam parte de seu crédito e ele, quieto e pacato como sempre, não se importava. Sua timidez era notória, alguns o tomavam por homossexual, pois a Juzimara, a secretária do chefe, uma mulher grande, alguns anos mais velha, cheiro de perfume barato, seios voluptuosos, cadeiras salientes - um verdadeiro caminhão de mulher, como diziam os mais desejosos -, já havia feito de tudo, sem sucesso... Ele sequer se defendia, apenas murmurava “Não é mulher para casar. Não me interessa.”.

O que ninguém notava, no entanto, era o olhar de Arnaldo em direção a Gertrudis, uma escrivã aparentemente sem graça, saia sempre longa, cabelos presos no alto da cabeça, óculos escondendo seus olhos caramelo, sorriso pequeno (que sempre cobria com a mão elevando os ombros, ao sorrir). Arnaldo era discreto, tão discreto que nem mesmo Gertrudis havia notado seu interesse! Não contava aos colegas com medo do barulho que causariam, nem se declarava com medo de ser recusado.

Gertrudis não deixava de ter certa atração por Arnaldo. Ela era a única que percebia sua dedicação ao trabalho e que reconhecia seu mérito. Admirava-o por isso, mais ainda por sua humildade de não contestar quando os colegas tiravam proveito de seus feitos e sacavam glórias indevidas. Para ele, o que importava era a certeza do dever bem feito. Gertrudis olhava timidamente e sorria seu sorriso pequeno, mas parava por aí. Dessa maneira, ambos sofriam embebidos em paixão platônica um relacionamento que estava ali ao lado, pronto para florescer.

Certo dia, no entanto, a repartição foi palco de mais uma das artimanhas do cupido. Houve um sorteio de um jantar romântico para dois no dia dos namorados em um restaurante bem razoável na Zona Oeste, e adivinhe quem levou? Arnaldo ganhou os ingressos. Digo que foi arte do cupido porque a sorte nada tem a ver com isso, já que Arnaldo era conhecidamente azarado, nunca em sua vida havia ganho sequer no Banco Imobiliário, quanto mais no Bingo ou um sorteio qualquer. Arnaldo enrolou e os colegas começaram a brincar e pressioná-lo a convidar a Juzimara para uma noite de volúpia, indiscretamente vomitando piadas sobre comer um bacalhau fresquinho e dois melões de sobremesa, entre outras obscenidades.

Arnaldo não cedeu à pressão e, determinado, dirigiu-se à mesa de Gertrudis, dizendo sucintamente: “Quer jantar?”. “Sim”, respondeu ela, sucintamente, como se estivessem tratando de um ofício que seria despachado ou um arquivo morto que devesse ser localizado. Marcaram, e no dia escolhido pelo cupido, Arnaldo foi buscá-la. De ônibus.

Os dois se entreolharam, ele com um pouco de perfume de mal gosto e com um terno que parecia de seu pai, camisa listrada, cinto e calça pretos, cabelo engomado e sapatos sobrengraxados, lustrados em exagero para esconder o desuso. Ela chegou com uma saia cinco dedos mais curta que sua saia sempre longa, o que já causou certa comoção em Arnaldo. Estava com o cabelo preso, mas sem os óculos, revelando os ternos olhos caramelo, de maneira que pela primeira vez Arnaldo percebeu como ela o olhava, comovendo-o novamente. A verdade é que o convite para o jantar a fez se sentir “mulher” pela primeira vez na sua vida, apesar de ela não saber muito bem como lidar com esse sentimento.

Após um traslado tranqüilo, chegaram ao boteco - pretenso restaurante europeu. O garçom apresentou-lhes a carta com os pratos paulistanos disfarçados com nome francês e o casal engoliu toda a fantasia, feliz e preocupado apenas um com o outro.

A mesa posta, reservada, no centro da casa, era de certa maneira intimidadora, já que o casal sofria gravemente do já descrito problema de timidez. A concentração dos dois era tamanha, no entanto, que se instalaram e pediram um vinho nacional com a maior desenvoltura, e Arnaldo desandou a falar sobre os mais variados assuntos, como infância, pais, trabalho, a questão da reforma tributária, enfim, o que vinha na cabeça dele, também por medo do silêncio. Gertrudis ouvia com atenção e balançava a cabeça de cima abaixo, em geral concordando. Vez por outra concordava com a discordância de Arnaldo em relação a alguma questão e variando o eixo do movimento, balançava a cabeça lateralmente.

Arnaldo se sentia nos céus. Não era virgem por pouco. Tinha tido uma namoradinha, uma menina do prédio, a qual dizia-se que conhecia todos os apartamentos do prédio, que o achava bonitinho, mas que o largou por um surfista maconheiro, deixando-o desolado, apaixonado. Gertrudis nunca tinha namorado sério, mas em uma brincadeira de médico, na qual o tema era cirurgia, foi aos finalmentes com um primo bem velho. E nunca mais. Sequer tinha certeza se aquilo realmente era o que diziam ser “fazer amor”.

Os dois já conversavam fluentemente quando o garçom aproximou-se com o vinho e um couvert: torradas, pão de queijo, duas azeitonas verdes graúdas, manteiga e um patezinho de atum com salsinha bastante simpático. Apressaram-se em terminar o assunto que estava embalado, sobre uma possível conspiração dos chefes de repartição pública para dominar o Brasil e instaurar uma ditadura - uma teoria de Arnaldo que ganhou admiração indissimulável de Gertrudis - e partiram educadamente ao ataque, dentro do tanto de educação e polidez que a simplicidade de ambos permitia.

Arnaldo insistiu que a dama tomasse a iniciativa, mais por medo de errar alguma etiqueta com relação à maneira de pegar na faca ou passar manteiga na torrada, um pouco talvez por cavalheirismo. Gertrudis delicadamente alcançou uma torrada e pediu licença a Arnaldo para experimentar o patê. A conversa diminuiu o ritmo e Gertrudis começou a tomar a iniciativa, estava se sentindo mais à vontade após bebericar um pouco de vinho tinto de Petrópolis e principiou a falar de sua vida, família, preferências e outros assuntos de gente tímida.

Arnaldo participava realizando, em seu turno, seu próprio repertório de concordos com a cabeça, acrescido de um pouco de sobrancelha às expressões, olhando fixamente um tanto desconcentrado com relação a conversa em si, pois sua cabeça nada podia pensar senão “Será que ela está gostando? Meu Deus, estou fazendo tudo direito? Ai, eu sabia, essa roupa não tá combinando, olha a cara dela...”. Acrescentava um ou outro comentário “coringa”, daqueles que serviriam para qualquer ocasião em qualquer lugar do mundo, com qualquer companhia, a qualquer hora. Falou sobre o tempo, sobre o sabor espetacular do vinho (que não tinha nada de saboroso), sobre o quão agradável era o restaurante e que sorte a dele em ganhar o convite.

Eu já mencionei que de sorte não teve nada, e que o tal convite para jantar fora obra do cupido. Digo mais, o cupido resolveu então dificultar um pouco as coisas que estavam indo tão maravilhosamente bem em uma noite que prometia selar um amor profundo com casamento e descendência. Arnaldo esticou a mão para provar uma azeitona. Gertrudis seguiu o falatório.

Foi quando Arnaldo engasgou. Quase tossiu, quase devolveu tudo à mesa, cuspindo o caroço no olho de Gertrudis, mas segurou sua reação em um movimento ninja de controle do esôfago e se restabeleceu sem que Gertrudis percebesse nada. Morreu de vergonha do que havia sucedido, não queria que Gertrudis percebesse, o que iria pensar de um sujeito que engasga com azeitona, pensou. E calou. Com caroço e tudo.

Gertrudis seguiu falando, mas percebeu certa alteração em seu companheiro, que não mais falava e vestia um semblante mais sério. Ao sorrir, não mais mostrava os dentes desalinhados, mantendo a boca fechada, expelia algumas gotas de suor, sua coloração parecia meio amarelada. Gertrudis imediatamente começou a se questionar se estava sendo companhia agradável, começou a sentir-se mal, a timidez voltou a crescer dentro de ambos. Arnaldo, com toda a vergonha de mostrar que tinha engasgado, não falava mais palavra sequer, além de que, a esta altura, o tom amarelado havia evoluído para um certo azul-esverdeado, enquanto respirava ruidosamente por suas narinas estreitas. Em Gertrudis crescia a certeza de que Arnaldo não estava desfrutando de sua companhia, e toda sua auto confiança começou a escorrer até o ponto em que começou a tentar esticar a saia para cobrir os cinco centímetros a mais expostos de suas pernas brancas.

Arnaldo tentou de todas as maneiras desengasgar discretamente, com a garganta, tomando um trago de vinho, se deu até uns tapinhas na nuca, esperançoso de que tudo voltasse ao normal, sofrendo com o tormento do caroço entalado na garganta. Tentou jogar um talher ao solo e abaixou, se esforçando embaixo da mesa em se livrar do companheiro inadequado. Gertrudis estranhou os ruídos. Tentou tossir, espirrar, não saía tosse, não saía espirro, não saía caroço, não saía voz...

Visivelmente irritado, levantou e foi ao banheiro em uma última tentativa desesperada, deixando sua amada a sós com o couvert. Um garçom, atento, começou a ouvir alguns ruídos inusitados partindo do toalete masculino e foi verificar. Adentrando o banheiro, descobriu Arnaldo em uma posição dificílima de descrever, correndo de costas, de cócoras, com uma mão puxando o queixo para baixo escancarando a boca, a outra se batendo na barriga enquanto topava as costas na parede, desequilibrado soltando um grunhido inédito.

O garçom se prontificou a ajudá-lo, esmurrando as costas, abraçando-o por detrás com todas as suas forças na tentativa de expelir o maldito objeto, mas de nada adiantou. Convocou então um time de futebol de garçons e começaram: dois apertavam a barriga, três o seguravam de ponta-cabeça, outros esmurravam as costas, uns até faziam cócegas nos pés ou lhe puxavam os cabelos, convencidos que ajudaria. Lá fora, o restaurante desatendido aguardava os garçons e profetizava o que poderia ser a barulheira dentro do sanitário. Certamente alguém havia comido algo muito indigesto, era o consenso geral.

Finalmente, quando o Jurandir cozinheiro, deu-lhe uma bicuda no cóccix, Arnaldo cuspiu o caroço, que varou a janela, quebrando o vidro e por sorte não atingindo ninguém, pois poderia acusar homicídio culposo. Arnaldo recuperou-se da surra, aprumou a camisa listrada com algumas marcas de chute, agradeceu aos companheiros com a voz recém-recuperada e marchou confiante, como um soldado que vencera uma difícil batalha, de volta à mesa para conquistar sua amada.

Se senta à mesa, sorridente, fala de música, cinema, viagens, até um pouco de novela para fazer uma moral. A moça sorri graciosamente, meio pálida, expressando certa aprovação com o olhar, mas não fala. Gesticulando, pede licença e logo se dirige ao banheiro, para surpresa do falante colega. Arnaldo então olha para o couvert e percebe que a outra azeitona não estava mais lá.

São Paulo, dezembro de 2001

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