06 março 2006

Jogo de Azar

Ganhou, como acontece todos os dias com algum felizardo. Porém, na hora de retirar o prêmio, começou o barulho. Zé Alcindo não era muito velho, mas já estava na idade em que percebia-se que a vida não prometia enormes mudanças em sua fortuna. Casado, pai de cinco crianças, era bem quisto pela comunidade e não tinha problemas maiores que todas as pessoas ordinárias têm com sua prole, com a esposa ou com o trabalho.

Zé Alcindo era gente simples, vivia em aluguel, dia após dia. Era homem correto e tinha fama de justo e honesto. Trabalhador da periferia da cidade e torcedor do time mais popular, Zé era um sujeito mirrado, magro e de estatura mediana. Mantinha-se sempre de barba bem feita, ainda que não tivesse gilete nova, e tinha uma postura altiva, talvez pela confortável sensação de não dever nada a ninguém.

Zé era conhecido também por seu espírito solidário, especialmente no que diz respeito a dinheiro, coisa que o levava inclusive a ter muito prejuízo ao emprestar para amigos, parentes e conhecidos, que se aproveitavam de sua generosidade. Muitas de suas brigas ordinárias com a esposa eram decorrentes das dificuldades decorrentes dos empréstimos de Zé, o “banqueiro” (como era conhecido pelos malandros reincidentes, tratando-o com desdém).

Sua generosidade também ao ajudar continuamente um velhinho que morava no bairro e que havia sido aposentado à força por um acidente de trabalho com um salário pífio que mal dava para se sustentar. Todo mês Zé recolhia os números com o velho, apostava na loteria, entregava-lhe o bilhete e não o deixava pagar, argumentando que este merecia mais um golpe de sorte depois de tantos golpes da vida.

Um dia, porém, o velhinho olhou bem em seus olhos e disse, com a serenidade dos velhos: “Meu filho, este bilhete é seu. Guarde-o bem.”. Não adiantou de nada sua retórica do golpe de sorte e tal, o velho virou as costas e foi-se, com jeito de quem não voltaria mais.

Não deu outra: o pobre velhinho morreu. Zé pôs-se a pensar longamente e sentiu-se contente pelo fim do sofrimento do velho que deve estar mais bem acomodado em outras vilas. Lembrou-se então do bilhete de loteria. Zé nunca havia jogado, não bebia, não fumava, enfim, era uma daquelas personalidades que transita entre o puro eclesiástico e o careta social. O resultado já haveria saído?

Já. O resultado já havia saído... E Zé mal pôde acreditar: seu bilhete era o único premiado. Perguntou discretamente, face ruborizada pela novidade da situação, de quanto seria o prêmio para o felizardo, e recebeu de contra-golpe meia dúzia de zeros – sem contar aqueles que vêm depois da vírgula –, tanto zero que ele não sabia nem soletrar.

Um milhão de reais já seria um dinheiro significativo, quando não incomensurável, em qualquer extrato da sociedade, quanto mais Zé Alcindo, cuja humildade nunca havia visto pessoalmente mais de três zeros, e trombava em ocasiões muito especiais com a nota de 50. Zé foi pra casa e resolveu ficar só, pediu compreensão a mulher que indagou se não iria trabalhar, e recluiu-se em seu quarto por dois dias. Não comeu. Não bebeu nem água. Não falou. Estavam todos preocupados, em especial a esposa, com as contas e o supermercado na cabeça. O máximo que Zé fazia era repetir o clássico que a mulher mais odeia ouvir do marido em momentos de crise: “Confie em mim, mulher...”.

A TV, o rádio e a internet gritavam para todo lado a estranheza do grande novo milionário foragido que não aparecia para retirar sua generosa aposentadoria precoce. Espalhava-se aos quatro ventos como “pela primeira vez na história desde que inventaram o dinheiro” se via uma situação tão inusitada, em que um amontoado de dinheiro esperava por seu dono e este parecia não se incomodar. Repórteres saíam à caça do ganhador, piadas rolavam por e-mail entre as pessoas, mas nada de Zé Alcindo apresentar-se. Um dia, justamente no último dia que o ganhador tinha de prazo para retirar o prêmio, o governo federal já não sabia ao certo o que fazer com o prêmio abandonado, um tal de Zé ligou para todas as emissoras de TV, convocou jornalistas, familiares, amigos e toda a comunidade em torno da pequena lotérica do bairro para retirar o prêmio.

Zé Alcindo então recebeu o prêmio em meio a uma confusão sem precedentes. Em seguida, em entrevista coletiva à imprensa, declarou que havia pensado, pensado, e que havia concluído que não era justo ele receber aquele dinheiro sem merecimento nem necessidade. Ele não era rico, claro, mas nunca lhe havia faltado nada, nem à sua família. Zé alegava que muita gente havia acreditado na falsa ilusão do dinheiro fácil, sem labor, e que resolvera, portanto, compartir o prêmio com todos os outros apostadores.

Tudo o que se via, em questão de segundos, os amigos lamentando, a família chorando, jornalistas correndo atrás do próprio rabo, trombando, como formigas depois de terem seu formigueiro destruído por um pé maldoso de criança. Zé começou então a mandar o dinheiro pra todo mundo. Feita a conta, as pessoas receberam o equivalente à metade do dinheiro que gastaram, e entenderam a mensagem.

Depois desta feita, o discurso de Zé não parava de ser reproduzido nas escolas, casas e paróquias da grande metrópole e de outras. As casas lotéricas entraram em crise profunda... Zé, no entanto, começou a ser chamado para inúmeros eventos, pela mídia que adorava colocá-lo em entrevistas e programas diversos de auditório; pelo governo para palestrar desde universidades a penitenciárias; por ONG’s e institutos para promover trabalho voluntário. Era disputado até pelas empresas para dar palestras de motivação e trabalho em equipe!!!

No decorrer de alguns anos, a vida deu uma volta completa. Feliz com a família e amigos, o dinheiro foi deixando de ser um problema. Com o tempo, sua fama correu o mundo e Zé, aquele mesmo Zé Alcindo da Vila pobre da periferia da cidade, era agora cidadão do mundo, viajava, ganhava muito bem e palestrava em três idiomas.

Apesar das diversas interpretações, inclusive muitas vezes mal intencionadas, sua mensagem era sempre a mesma, qualquer que fosse o idioma ou o tema da palestra: Dinheiro que é ganho sem justificativa, sem suor, sem merecimento, não tem valor, não constrói, ao mesmo tempo em que pode destruir com facilidade muita coisa.

De onde Zé Alcindo tirou tanta sabedoria, nenhum sociólogo, psicólogo ou qualquer outro explicólogo soube explicar, mas o fato real é que, no fim da vida, Zé, homem realizado, famoso e respeitado, acumulava uma fortuna aproximada de seis zeros – sem contar aqueles que vêm depois da vírgula.


São Paulo, maio 2003

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