02 março 2006

A Chuva da Vó

A vó sempre contava de um lugar especial, um lugar bonito, cheio de coisas preciosas. Ainda lembro quando eu era bem pequenininha, ouvindo tudo aquilo com uma alegria só, e uma atenção que não prestava nem pra atravessar a rua.

Era sempre a mesma coisa: chegava a hora de dormir e lá vinha a vó dar um beijo. E lá vinha a vó com história. Mas eu não importava, queria sempre a mesma coisa, queria que contasse mais e mais como era esse lugar que ela tanto gostava.

"O céu era sempre azul, sol raiando, brisa leve, pássaros dançando e coisa e tal. Chovia, mas só pra regar a terra, porque o céu continuava azulzinho, era chuva de alegria, não de frio. Quando caía a noite, nascia a lua, lua nova, linda como se fosse primeira vez. Logo depois a lua começava a crescer até que quando a gente assustava ela estava cheia, tão clara que escondia as estrelas para a gente olhar só pra ela. No fim da noite ela minguava, para se pôr em seguida, dando lugar ao sol novamente."

A Vó contava que naquele lugar, os animais conversavam. Lá, os homens e mulheres cresciam mas ao mesmo tempo permaneciam crianças e brincavam entre si. As casas eram de cores vivas, muito alegres, com grandes janelas e sem chave. Não havia carros nem barulho nem tevê nem videogame nem computador nem Barbie nem dinheiro.

Eu então perguntava e perguntava onde ficava este lugar, curiosa, pronta para pegar a escova de dentes e correr, de carro, de ônibus, de mula, de a pé... Correr, correr pra chegar lá. Mas não tinha jeito, a vó não falava. Perguntava então como se chamava esse lugar, se tinha um nome tão bonito como era a imagem que eu tinha na minha cabeça. Ela insistia que não podia dizer, que eu tinha que descobrir sozinha, senão estragava tudo.

Cresci e larguei a vó como todo neto mal-agradecido larga. E a deixei largada até passar aquela fase egostróica que principia na adolescência e só termina quando a gente se dá conta que a vó não vai durar muito porque as vós dos amigos tão começando a passar desta pra melhor. Lembramos logo que elas ainda têm muito pra contar pra gente e que perdemos um tempão e temos que começar a correr atrás dela encaixando aqui e ali na rotina da roda-viva uma que outra viagem para aquela afastada cidade do interior onde ela se refugia. Neste ritmo, uma ou duas vezes por ano vendo a vó fraquejar aos pouquinhos não sei se mais por idade ou solidão, fui recuperando devagar a memória daquele lugar tão especial, que não deveria nunca ter saído da ponta da língua, nem da pole-position dos meus sonhos.

Fui amadurecendo minha vida. Visitando de quando em quando a vó, mas já não falávamos daquele lugar. Talvez porque eu não dormisse perto dela, talvez ela mesma o tivesse esquecido.

Casei. Tive meus filhos.

Meus filhos cresceram. Minha vó se foi.

Quando a vó se foi meu coração apertou. Além de todo aquele aperto de perder um ente querido, senti um medo profundo de nunca mais conseguir lembrar direito como era aquele lugar, nem nunca descobrir onde fica.

Essa agonia me assombrou por certo tempo. Até que virei vó. Ao ver a primeira filha da minha filha, a emoção transbordou. Quando eu achava que ter filho e neto seria a mesma coisa, percebi que estava enganada. Redondamente. A vó sabe muito de muita coisa, e sabe o quanto os netos não sabem. Ainda assim ela não tem a urgência de educar a sobrevivência da criança como os pais têm. Ela já passou por tudo isso e sabe que sobrevive do mesmo jeito.

A lição de casa da vó é distribuir amor, afogar os netos com liberdade, subverter todas as regras e disciplinas do lar, enchê-los de chocolate, jantar batata-frita com eles, comprar-lhes presentes inapropriados, alimentar as crianças de imaginação. Tudo isso sem esquecer de escovar o dente. E, mais importante, de contar histórias. Finalmente, quando comecei a contar histórias para minha primeira netinha, coisinha linda, foi que eu percebi o que a minha vó queria me dizer. Aquele tal lugar, aquele céu azul, todo esse mundo que minha vó me contava era um lugar ao qual não se vai de carro, ônibus, mula ou a pé. É um lugar que tem lua, bichos que conversam, gente grande que brinca, céu sempre azul, brisa leve, chuva pra regar o jardim. Mas não tem nome. É um lugar que todos nós conhecemos, lindo, único. Não fica perto nem longe. Fica escondido dentro da cabeçinha de uma criança bem-amada.


Março de 2006

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